CRIANÇAS, SIM. SOLDADOS, TAMBÉM!

Vários governos africanos exigem, como se nada tivessem a ver com o assunto, uma estratégia comum para travar o recrutamento de crianças-soldado nos conflitos que abalam a região e reclamam um quadro regulamentar continental para combater a utilização de menores em guerras.

Numa conferência ministerial africana realizada em Rabat sobre o desarmamento, a desmobilização e a reintegração destes menores, o ministro dos Negócios Estrangeiros da Serra Leoa, que foi uma criança-soldado, destacou “os traumas” que os acompanham durante anos e a necessidade de prestar apoio, a estas crianças, no âmbito de uma estratégia de reinserção.

“O meu envolvimento é pessoal porque fui vítima desta desumanização (…) Peço que entendamos o que é uma criança-soldado, é uma experiência triste e traumática. (…) São crianças deslocadas que sofrem em silêncio”, disse Musa Kabba, que insistiu na necessidade de elaborar uma estratégia comum contra esta chaga que tenha “uma abordagem continental realista que considere a especificidade africana”.

Sublinhou que o processo de reintegração “não é um trabalho técnico, mas implica um sacrifício humano e uma vontade política”, ao mesmo tempo que recomendou criar uma comissão de prevenção contra o recrutamento de crianças-soldado e alargar o financiamento dentro de uma cooperação regional africana.

No mesmo sentido, o ministro dos Negócios Estrangeiros marroquino, Naser Burita, apelou à elaboração de um instrumento jurídico para garantir “uma luta eficaz” contra este fenómeno, destacando “a ausência de uma base jurídica comum” em África a esse respeito.

Naser Burita alertou que os esforços desenvolvidos no continente para travar o recrutamento de crianças-soldado continuam a ser “insuficientes” e indicou que o seu número ronda os 120.000, o que representa 40% dos menores utilizados em conflitos a nível mundial.

Por sua vez, o ministro dos Negócios Estrangeiros do Níger, Bakary Yaou Sangaré, sublinhou a crescente insegurança no Sahel, onde persiste “um recrutamento forçado e abusivo de crianças por grupos terroristas”.

Perante um problema que qualificou de “intolerável”, o ministro nigerino apontou que o seu país está a agir “com determinação” para consolidar a segurança social e implementar a sua estratégia nacional de desarmamento, desmobilização e reintegração dos grupos armados, centrando-se nas crianças.

Segundo a investigadora Naomi Haupt, África alberga 40% da população mundial de crianças-soldado, estimada em 250.000 pelas Nações Unidas, presentes principalmente em Moçambique, República Democrática do Congo (RD Congo) e Sahel.

“Metade dos países que recrutaram crianças para conflitos armados estão em África”, contextualizou a investigadora do Instituto de Estudos de Segurança (ISS, na sigla em inglês), no âmbito de uma entrevista sobre o “Dia Internacional contra o Uso de Crianças-Soldado”.

Segundo a especialista, “os países africanos envolvidos incluem Moçambique, a República Democrática do Congo (RD Congo), a Nigéria, o Mali, a Somália, o Sudão do Sul, o Sudão, a República Centro-Africana e os Camarões”.

Estas crianças “são utilizadas para uma variedade de funções nos conflitos armados, consoante o grupo que as recruta, nomeadamente para combate, como mensageiros, como escravos sexuais, entre outros”, declarou.

As funções executadas podem ser perigosas e implicam frequentemente graves abusos físicos e psicológicos, lamentou.

Na província moçambicana de Cabo Delgado, no Norte, “os militantes islâmicos aumentaram drasticamente o recrutamento de crianças como soldados”, indicou.

Devido às acções fundamentalistas islâmicas, o recrutamento de crianças-soldado aumentou acentuadamente no Sahel e países como o Mali e o Burkina Faso – onde a insurreição terrorista quintuplicou o recrutamento de crianças-soldado só em 2024 – foram especialmente afectados, ao lutarem contra filiados da Al-Qaida e do Estado Islâmico, disse.

No Sudão, esta tem sido uma questão persistente, que piorou notavelmente com o início do conflito entre as Forças Armadas Sudanesas (SAF, na sigla em inglês) e as Forças de Apoio Rápido (RSF, na sigla em inglês), em 15 de Abril de 2023.

“O recrutamento de crianças-soldado tem sido um problema de longa data no Sudão, especialmente em regiões propensas a conflitos como o Darfur e o Cordofão, mas a guerra veio agravar o problema”, lamentou.

As SAF e as RSF têm sido acusadas de recrutar crianças, através da coerção, medo e promessas de bens materiais, numa conjuntura em que a guerra faz com que faltem as condições mais básicas de vida, salientou.

“Em Setembro de 2023, as SAF entregaram 30 crianças-soldado ao Comité Internacional da Cruz Vermelha. No entanto, o recrutamento continua, com relatos de jovens de apenas 14 anos envolvidos no conflito”, frisou.

Já o vizinho Sudão do Sul tem igualmente registado recrutamentos de crianças.

“A ONU verificou 152 casos de recrutamento de crianças em 2023, o que indica uma tendência ascendente”, disse a investigadora.

No entanto, o Governo do Sudão do Sul, em colaboração com as Nações Unidas, tem trabalhado activamente para resolver esta questão, indicou.

O recrutamento de crianças-soldado em zonas rurais ou campos de refugiados na RD Congo, país vizinho de Angola, aumentou significativamente nos últimos anos, em especial no leste do país, que enfrenta actualmente uma guerra entre o grupo terrorista Movimento 23 de Março (M23), apoiado pelo Ruanda, e o exército democrático-congolês.

Já na Nigéria, este problema é mais significativo no nordeste, onde o grupo terrorista Boko Haram, entre outros, está activo.

“Desde 2009, mais de 8.000 crianças foram recrutadas por vários grupos armados, em que são frequentemente forçadas a desempenhar papéis de combate, utilizadas como espiões ou mesmo como bombistas suicidas”, disse.

Para a Etiópia, este é um problema que se destaca em Oromia e Amhara, onde “investigações revelaram que as autoridades e as forças de segurança regionais têm recrutado crianças à força para cumprir as quotas de recrutamento militar, tendo sido encontradas crianças com apenas 11 anos de idade em campos temporários, a serem preparadas para o treino militar”, frisou.

“A Comissão Etíope dos Direitos Humanos documentou numerosos casos de crianças detidas arbitrariamente e pressionadas a alistarem-se nas forças armadas, o que constitui uma clara violação das leis nacionais e internacionais de proteção dos direitos das crianças”, salientou.

Apesar dos esforços globais para aumentar a idade mínima de recrutamento para grupos armados, África continua a ser a região mais activa no recrutamento de crianças-soldado, concluiu.

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